segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sagrado Coração


Por Renato Ribalta

            Com um texto na minha prancheta, vou indo para a universidade dentro do coletivo que balança mais do que a nau de Odisseu sobre o mar furioso de Poseidon. Minhas vagas são os buracos da BR-101. Aconselham-me sempre para parar de ler no ônibus, pois, eu posso ter um deslocamento de visão, creio que esse fato acontecerá no dia em que eu parar de ler.
            Antes de chegar à BR embarcam nesse navio negreiro urbano uma senhora com um menino de aproximadamente uns oito anos de idade. Este está com o uniforme da escola, cujo nome é o titulo dessa crônica, ele vem e senta ao meu lado e a senhora diametralmente oposta a ele, corredor com corredor como dois argonautas a remar ao sabor da vida e do vento Euro (leste).
 O menino retira a atenção que tinha no texto, está inquieto e sorrindo, começa a tocar em mim como se quisesse mostrar algo, a senhora chama a atenção dele e me diz que é seu neto e é surdo e mudo, fala que foi buscar ele na escola e que também é professora junto com o pai e estão lhe ensinando LIBRAS, e que ele também está tendo aulas na escola dessa língua de Virgílios. Pergunto qual o nome dele, ela me diz que é Gabriel. Me fez lembrar a passagem do livro de Lucas (1:19): Eu sou Gabriel, o que está na presença de Deus.” E a sua avô lembrou-me o personagem Virgílio na Divina Comédia, de Dante Alighieri, o sagrado e o profano em três linhas dessa crônica, porém a vida é assim mesmo sem estilos textuais nem tampouco diagramações.
Gabriel como um Dante/Arcanjo com sua espada em riste tentando dissipar de sua vida as trevas do silêncio e acompanhado do seu Virgílio consangüíneo, guiando-o diante desse vale sem referente e referencial oral, me mostra o seu notebook do Speed Racer, como quem quer se comunicar a todo custo. O equipamento está desligado. Nós apertamos algumas teclas, mas zero a zero, nada do troço pegar. Creio o que me atraiu a ele não foi a complacência, mas sim o fato dele ser a minha antítese, pois, como diziam antigamente, eu falo mais do que o homem da cobra.

O coletivo estava se aproximando do terminal integrado, a viagem (SEI) teria o seu fim para nós, eu iria para a universidade acumular mais sinônimos, objetos diretos e indiretos, pronomes... E Gabriel continuaria a sua viagem com sua espada reluzente diante da opacidade do mundo sem símbolos, como no trecho daquela canção do álbum: uma outra estação da Legião Urbana, que ironicamente Renato Russo não viveu o suficiente para imortalizá-la com a sua voz, e que mais ironicamente se chama Sagrado Coração:

“Por isso lhe peço por favor 
Pense em mim, ore por mim
E me diga:  
– Este lugar distante está dentro de você
E me diga que nossa vida é luz
Diga que nossa vida é luz
Me fale do sagrado coração
Porque eu preciso de ajuda”

Dedicado aos Virgílios que velam as vidas dos Dantes.

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